O Blog transcreve artigo do Jurista e professor Fábio Konder Comparato sobre o vergonhoso aumento que os deputado federais deram para si próprios. A análise do profesor Comparato, das mais abalisadas, foi
reproduzida do Blog Conversa afiada, do companheiro Paulo Henrique Amorim.
UMA DEMOCRACIA SEM POVO
Fábio Konder Comparato
Suponhamos que alguém entre em contato com um advogado para que este o
represente em um processo judicial. O causídico aceita o patrocínio dos
interesses do cliente, mas não informa o montante dos honorários, cujo
pagamento será feito mediante a entrega de um cheque em branco ao
advogado.
Disparate sem tamanho?
Sem a menor dúvida. Mas, por incrível
que pareça, é dessa forma que se estabelece a fixação dos subsídios dos
(mal chamados) representantes políticos do povo. Com uma diferença,
porém: os eleitos pelo povo não precisam pedir a este a emissão de um
cheque em branco: eles simplesmente decidem entre si o montante de sua
auto-remuneração, pagando-se com os recursos públicos, isto é, com
dinheiro do povo.
Imaginemos agora que o advogado em
questão, sempre sem avisar o cliente, resolve confiar o patrocínio dos
interesses deste a um companheiro de escritório, por ele designado, a
quem entrega o cheque em branco.
Contrassenso ainda maior, não é mesmo?
Pois bem, é assim que procedem os
nossos senadores, em relação aos suplentes por eles escolhidos, quando
se afastam do exercício de suas funções.
Não discuto aqui o montante da
remuneração percebida pelos membros do Congresso Nacional, embora esse
montante não seja desprezível. Além dos subsídios mensais propriamente
ditos – quinze por ano –, há toda uma série de vantagens adicionais. Por
exemplo: o “auxílio-paletó” no início de cada sessão legislativa (no
valor de um subsídio mensal); a verba que cada parlamentar pode gastar
como bem entender no seu Estado de origem; as passagens aéreas gratuitas
para o seu Estado; sem falar nas múlti-plas mordomias do cargo, como
moradia amplamente equipada, carro oficial e motorista etc. Segundo o
noticiado na imprensa, esse total da auto-remuneração pessoal dos
membros do Congresso Nacional eleva-se, hoje, à cifra (modesta, segundo
eles) de R$114 mil por mês.
Ora, tendo em vista o estafante
trabalho que cada deputado federal e senador realiza – eles trabalham,
em média, três dias por semana –, resolveu o Congresso Nacional, por um
Decreto Legislativo datado de 19 de de-zembro último, elevar o montante
do subsídio-base, para a próxima legislatura, em 62% (por extenso, para
confirmar a correção dos algarismos: sessenta e dois por cento).
Ao mesmo tempo, consternados com o fato
de perceberem remuneração superior à do presidente e vice-presidente da
República, bem como à dos ministros de Estado, os parlamentares
decidiram, pelo mesmo Decreto Legislativo, a equiparação geral de
subsídios.
Acontece que o subsídio dos deputados federais serve de
base para a fixação do subsídio dos deputados estaduais e dos
vereadores, em todo o país. Como se vê, a generosidade dos membros do
Congresso Nacional, com dinheiro do povo, não se limita a eles próprios.
Agora, perguntará o (indignado, espero) leitor destas linhas: – Como pôr fim a essa torpeza?
Pelo modo mais simples e direto:
transformando o falso mandato político em mandato autêntico. Ou seja,
instituindo entre nós um verdadeiro regime democrático, em substituição
ao fraudulento que aí está. Se o povo é realmente soberano, se ele elege
representantes políticos para que eles atuem, não em proveito próprio,
mas em prol do bem comum do povo, en-tão é preciso inverter a relação
política: ao em vez de se submeter aos mandatários que ele próprio
elegeu, o povo passa a exercer controle sobre eles.
Alguns exemplos. O povo adquire o poder
de manifestar livremente a sua vontade em referendos e plebiscitos, sem
precisar da autorização do Congresso Nacional para tanto, como dispõe
fraudulentamente a Constitui-ção (art. 49, inciso xv). O povo adquire o
poder de destituir pelo voto aqueles que elegeu (recall), como acontece
em várias unidades federadas dos Estados Unidos.
Nesse sentido, é de uma evidência
palmar que a fixação do subsídio e seus acréscimos, de todos os que
foram eleitos pelo voto popular, deve ser referendada pelo povo.
Para tanto, o autor destas linhas
elaborou um anteprojeto de lei, apresentado pelo Conselho Federal da OAB
à Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados em 2009,
instituindo o referendo obriga-tório do decreto de fixação de
subsídios, quer dos parlamentares, quer dos membros da cúpula do Executivo. Sabem qual foi a decisão da Comissão? Ela rejeitou o
anteprojeto por unanimidade.
Confirmou-se assim, mais uma vez, o
único elemento absolutamente constante em toda a nossa história
política: o povo brasileiro é o grande ausente. A nossa democracia (“um
lamentável mal-entendido”, como disse Sérgio Buarque de Holanda) é
realmente original: logramos a proeza de fazê-la funcionar sem povo.
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