sexta-feira, 15 de março de 2013

Revivendo a escritora Eneida de Moraes

A jornalista e escritora Eneida de Moraes
Um dos nomes mais expressivos da literatura paraense, Eneida de Moraes foi uma mulher revolucionária em seu tempo. Escritora, poeta, jornalista, pesquisadora e militante política de esquerda, Eneida desde cedo teve inclinações para a literatura e para a política. Durante os anos 20 e 30, trabalhou em vários jornais de  Belém e do Rio de Janeiro, atuando como repórter e como cronista, ao mesmo tempo entrava no mundo do carnaval do Rio de Janeiro, onde durante quase toda a vida foi uma foliã e defensora da cultua carnavalesca.
Eneida escreveu mais de 10 livros principalmente poesias e crônicas.
Eneida participou ativamente dos movimentos políticos contra o Estado Novo, sendo por isso perseguida, presa, torturada, tendo inclusive que partir para o exílio.
Na prisão, a intelectual paraense torneou-se amiga de figuras da política e da cultura nacional como Olga Benário Prestes, esposa de Luis Carlos Prestes, e do escritor alagoano Graciliano Ramos, autor de "Memórias do Cárcere" onde ficou imortalizada.
Eneida nasceu em Belém em 1904 e faleceu em 1971, no Rio de Janeiro. Foi a primeira madrinha da tradicional Banda de Ipanema e já foi homenageada pela Escola de Samba Salgueiro, em 1973, com o tema "Eneida, carnaval e fantasia".
Eneneida de Moraes é homenageada em Belem com uma Praça, Escola e Rua. Ainda é pouco. É importante que as secretarias de culturas do Estado e de Belém mostrem aos mais jovens a importância dessa talentosa mulher paraense, forte e livre como muito bem retratou em versos o poeta João de Jesus Paes Loureiro:
"Eneida sempre livre/Eneida sempre flor/Eneida sempre viva/ Eneida sempre amor"
Este escriba homenageia hoje a grande Eneida de Moraes publicando uma de suas crônicas mais famosas.
Deliciem-se com a leveza e modernidade do texto de nossa Eneida de Moraes.


CABARÉ (Eneida de Moraes)

Esta palavra apareceu em minha vida, depois que ela (minha mãe) morreu. Ao começo apenas uma palavra, mas quem agora iria explicar-me o que é cabaré? Um lugar público onde se dança, canta e bebe, como dizem os dicionários? A sede de leitura crescendo (...).
Foi em 1931 que consegui, afinal, ir a um cabaré. Ia, enfim, aprender, por mim mesma, aquilo que ela não tivera tempo para me explicar. Agora não mais a palavra, mas o acontecimento.
Era uma noite belíssima, dessas noites cariocas de terra, céu e mar iluminados. Um grupo de amigos a meu pedido levou-me ao Assírio (antigo cabaré de prostitutas de luxo na Cinelândia com decoração inspirada/copiada do Salão Assírio do Municipal). Como esquecer aquele salão de decoração lúbrica, uma orquestra atacando dolentes tangos argentinos, e mulheres tristes, estranhas, entre bicho e gente, todas ou quase todas com vestidos de rendas pretas?
Mas então isso é que é cabaré? Cabaré não é uma casa alegre, movimentada, riso em todas as bocas, champanha estourando rolhas, taças sendo bebidas em desvairada alegria? As famílias sempre temeram o cabaré, por que? Eram perguntas a um e a outro. Sim, tu é que és uma boba, cabaré é isso mesmo, as mulheres são tristes porque levam uma vida triste. Impossível, impossível.
Pares deslizavam como se fossem mortos ou bonecos movidos por uma lenta manivela; a música não atingia nem sequer a ponta dos dedos de qualquer dançarino. Nunca pude suportar tangos argentinos: é sempre a história de infidelidades, em todos eles há mulheres desleais, traindo homens, homens sofrendo, mas jurando vinganças. Muitos anos depois, entrevistei Ataualpa Iupanqui, folclorista argentino. Perguntei-lhe se, como eu, julgava o tango de sua pátria o hino nacional do corno. Sua resposta:
— No chica; la burguesia argentina está tan y tan podrida que no tiene cálcio para hacer cuernos.
Mas aqueles vestidos de rendas pretas? Nunca os vira em tão grande profusão, tão feios, tão tristes, entristecendo ainda mais as mulheres pálidas, mas muito pintadas, máscaras sobrepostas porém soltas, visivelmente atuando uma sobre a outra. Grandes olheiras – Teda Bara em moda – boquinhas de batom fazendo corações em grandes bocas pintadas só no meio – em moda também Clara Bow.
Vocês me enganaram, isso não é um cabaré. Onde aquelas mulheres lindas e fatais, luxuosamente vestidas, cobertas de jóias, rodeadas de homens apaixonados, levando-os a loucura, aquelas figuras tão banalmente célebres.
Saímos para a rua, fomos bebericar num bar, esse sim, muito alegre. Jamais poderia acreditar no que afirmavam os amigos. Pois sim que aquilo era cabaré. Não tinha tango argentino? Não viste as prostitutas? Não estavam bebendo cerveja? Pois tudo isso é cabaré. Como pode haver cabaré com cerveja e mulheres tristes? Que diria disso a senhora Margueriti Gauthier?
Vida correndo(...). Outra noite chegou, em S. Paulo. Confidenciei a amigos minha decepção com o cabaré carioca e a vontade de conhecer um paulista (...) – Não, não, isso não é um cabaré. Foi isto mesmo, igualzinho que me mostraram no Rio. Lábios tristes, boca fingindo outra boca, a verdadeira debochando da falsa. Só a fala dos amigos afirmando o cabaré ou espantados com a minha ignorância, alegravam o ambiente.
Súbito, estourou uma briga. Aumentou: cadeiras partiram em várias direções, garrafas de cerveja transformaram-se em petardos e caíam no chão; palavrões enormes acompanhavam ritmadamente a luta. Querias agitação, não querias? Achavas que cabaré não pode ser coisa morta e agora aí está: sangue, cabeças partidas, gritos histéricos de mulheres em fuga, garrafas, cadeiras quebradas.
Não precisaria mais insistir. Minha curiosidade por cabaré terminou. Até hoje, para mim, cabaré é um lugar muito triste com mulheres idem, todas vestidas de rendas pretas, bebendo cerveja, e tangos argentinos falando de infidelidades e desgraçados amores.
Impossível a cerveja em cenas de cabaré. (Do livro Banho de cheiro, de 1962).

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